Jussara Lucena, escritora

Textos

Hora de voar

Amanhã teremos uma nova missão. O comandante recomendou que descansássemos, mas o sono não vem. Sempre sonhei em voar, ver a Terra lá de cima, sentir o frescor do vento em meu rosto e desafiar a Física. Eu queria subir cada vez mais alto, ficar mais próximo das estrelas, conquistar o espaço.As histórias de um amigo de meu pai me motivaram para isso.

Desde que me conheço por gente eu ouvia falar dele. Era uma das pessoas mais famosas no início deste século XX, um herói nacional. Ele e meu pai se conheceram ainda criança, em Ribeirão Preto. Meu pai cresceu e tornou-se um empregado na fazenda da Família Dumont. Lá se produzia muito café. O pai do seu Alberto, o “Rei do Café” era um engenheiro que substituirá a mão de obra escrava por muitas máquinas movidas a vapor. O lugar era um paraíso da mecânica e a diversão dele e de meu pai era pilotar e ajudar na manutenção daquelas fantásticas engenhocas.
Meu pai sempre viu nele um grande amigo, amizade que conservaram até o dia da morte do grande aeronauta.

Embora seus encontros fossem eventuais, depois que Santos Dumont praticamente mudou-se para a França, meu pai era uma espécie de confidente, mesmo distante. Agora com um pouco mais de experiência de vida penso que os sentimentos dele por meu pai foram além da amizade, algo impossível de ser retribuído por meu pai e que também naquela época e ainda hoje é difícil de ser aceito.

A primeira vez que o vi foi em 1915, quando o mundo enfrentava a sua Primeira Grande Guerra. Ele era um sujeito muito elegante, vestia roupas finas, muito diferente das pessoas simples da minha cidade. Diziam que ele ditava a moda em Paris e no Rio de Janeiro, a Capital da República. Enquanto minha mãe servia um café para os dois eu os espiava pela fresta, escondido atrás da porta.
Embora não se vissem há muitos anos, o Seu Alberto falava com meu pai como se nunca tivessem se separado e era possível ver um brilho em seu olhar, muito embora ele se dissesse muito triste com os acontecimentos no mundo. De fato, sempre estiveram próximos. Meu pai apanhou a caixa de madeira onde guardava as cartas recebidas dele desde 1897 quando ele se mudou para a França. Junto com as cartas ele sempre enviava recortes de jornal com as fotos de seus feitos. Tudo bem guardado e organizado por meu pai. Passaram a recordar cada momento, espalhando os papéis por sobre a mesa.

Um dia tive a coragem de perguntar ao meu pai sobre a amizade dos dois e pedi que me contasse um pouco da infância no sítio. Eu estava curioso em saber como o Seu Aberto tinha se interessado em voar.Meu pai me contou que ele e o Seu Alberto costumavam deitar na grama e olhar para o céu. Durante os dias invejavam os pássaros em seus voos, durante a noite sonhavam em alcançar as estrelas. Eles procuravam as árvores mais altas, nas mais altas colinas e se imaginavam voando a partir delas. Havia uma casa na árvore onde a mesa da refeição ficava num ponto mais alto em relação ao piso, não havia telhado, para que a casa ficasse aberta para o céu.

Certa noite, de céu límpido, eles tentavam localizar as estrelas com base num mapa celeste que o Seu Henrique, pai do Alberto, trouxera em uma de suas viagens. Algumas das estrelas que não encontraram no mapa começaram a se mover. Elas pareciam mais próximas, de coloração diferente. Em certo momento uma delas pareceu ficar ainda mais perto e ofuscou a visão deles. Assustados correram para casa. Combinaram não contar nada para ninguém. Meu pai nunca mais viu o fenômeno se repetir, já Seu Alberto contou que durante o dia viu os contornos do que parecia ser um balão como os descritos nos livros de Júlio Verne, histórias que o Seu Alberto lia e relia e discutia com meu pai e que mais tarde eu pude ler também, nos mesmos exemplares dos livros que nos foram presenteados pela família Dumont no dia que o Seu Henrique vendeu a propriedade, depois do acidente de charrete.

Seu Alberto estava ansioso para descobrir mais. Sabia que na Europa muitos cientistas estavam pesquisando os balões e alguns tentavam voar num objeto mais pesado que o ar. Ele teve certeza do que queria quando em 1891 visitou o velho continente, a terra de seu avô.

Depois que meu pai se foi eu li as cartas que recebeu do Seu Alberto. Numa das primeiras o Seu Alberto comentava que conhecerá um professor, chamado Garcia, que além de ser seu mestre nas ciências da mecânica, no tempo de convivência desenvolveram uma amizade especial. Contava que, como eles, Garcia também observava os céus, passou por experiência similar a deles, vendo os pontos luminosos que se moviam. E Além disso, ele tivera uma experiência muito interessante, viajara a bordo de uma máquina que flutuava por sobre o planeta. Garcia descrevia a Terra como um planeta azul e o espaço com um local de silêncio absoluto. Isto despertou em Alberto ainda mais vontade de voar, de construir novas máquinas.
Garcia tinha informações, não possuía desenhos nem a tecnologia para reproduzir o que virá a bordo da grande nave, assim, dedicava a sua vida às pesquisas e a busca de pessoas que pudessem ter tido a mesma experiência. Dividiu o que aprendeu com Alberto até o dia em que doente voltou para a sua Espanha.

Seu Alberto isolou-se ainda mais depois que o amigo partiu. Assim, muitas vezes num trabalho solitário desenvolvia seus balões, dirigíveis, motores e máquinas voadoras. Ambicionava conquistar o espaço, porém sabia das limitações técnicas de sua época. Em suas cartas falava da sua solidão, mesmo quando rodeado por pessoas da alta sociedade parisiense, meio em que vivia graças à fortuna da família. Ele precisava daquelas pessoas para divulgar suas ideias, destacar o seu Brasil. Rapidamente ele alcançou muitas conquistas e reconhecimento internacional. Possuía muitos seguidores, todos queriam se parecer com o grande herói.

Certo dia ele realizou mais um de seus desejos: encontrou-se com Júlio Verne, que não era um cientista, mas suas histórias de ficção direcionaram o trabalho de muitos pesquisadores. Descobriu que Verne não era só um sonhador, um inventor de histórias. Verne contou-lhe que havia experimentado o contato com o que ele chamava de seres especiais que povoavam seus sonhos. Na realidade ele preferia acreditar tratar-se de sonhos, caso contrário ele mesmo precisaria reconhecer um pouco da sua loucura. Afinal, quem acreditaria em civilizações avançadas em máquinas fantásticas se tudo não pudesse ser provado. Verne confessou estar muito interessado nos trabalhos de Dumont e o invejava, afinal, ele apenas escrevia, não tinha habilidades ou conhecimento para reproduzir o que ocupava sua mente, capacidade que Alberto tinha de sobra. Verne morreu dois meses depois do encontro.

Seu Alberto teve um sonho noturno: um homem vindo do espaço lhe mostrava o futuro e apontava que as máquinas com as quais sonhava poderiam destruir o mundo, mas que ele poderia vender suas ideias para construir a paz entre os homens. Foi esse o ideal que Santos Dumont perseguiu. Mas para defendê-las ele precisava estar na vanguarda, pois outros poderiam desenvolver as máquinas voadoras e usá-las de maneira inadequada. Ele buscava mais seguidores e trabalhava freneticamente para aperfeiçoar seus inventos, incentivava os desafios tecnológicos. Pensava que talvez assim as disputas evitassem conflitos e aproximasse as pessoas, tornando os objetivos comuns.
Porém em 1914 teve início a Primeira Grande Guerra e os inventos como as máquinas voadoras foram adaptados para matar, destruir. Ele que já apresentava uma doença degenerativa, buscou o isolamento, voltou ao Brasil e assim eu pude conhecê-lo.

Aprendi a gostar de muitas coisas que ele e meu pai também gostavam. Como eu queria voar também e não dispunha dos recursos de Seu Alberto, a única maneira que encontrei foi ingressar na aeronáutica. Alguns anos mais tarde eu me tornei um piloto, logo depois que os aviões foram usados por Getúlio Vargas para bombardear São Paulo e acabar de vez com a saúde do Seu Alberto. Como ele eu ainda acreditava que os aviões pudessem aproximar as pessoas e continuei a minha carreira. Tornei-me um piloto experiente, comandante de uma esquadrilha.

O mundo mais uma vez está em guerra. No final do ano passado,após treinamentos no Panamá e nos estados Unidos eu e meu grupo nos juntamos a FEB, para combate aos nazifascistas na Itália.Foram muitas missões a bordo do meu P47 onde sobrepujamos a Flak,poderosa artilharia alemã.

Bateu a saudade de casa, o sono ainda não veio e amanhã será a minha última missão em ares italianos. Como será este dia 14 de abril de 1945? Precisamos destruir um depósito de munições e uma fábrica em Bologna. Teremos que voar baixo e a artilharia deles estará bem posicionada.

O dia chegou, sairemos as 9h10min. O meu caça e os outros três aviões já estão prontos. Estou no céu, num dia límpido e de um azul especial. Tudo calmo até então. No horizonte um dos caças avistou um objeto diferente, talvez um balão. Pedimos autorização para observação, que foi concedida. Segui na frente, os outros três na escolta. Mal tentamos nos aproximar e o objeto deslocou-se para a direita numa velocidade incrível. Corrigimos nossa rota e a máquina voadora veio em nossa direção e não nos deixou tempo para qualquer reação. Passou por sobre nossas cabeças e desapareceu no infinito. Não tínhamos explicação para o fato. Lembrei-me dos avistamentos de meu pai e de Seu Alberto. Continuamos em nossa missão.

Estávamos perto dos alvos. De repente, do nada, surge um caça alemão. Ele não deveria estar ali! Nós nos separamos e a aeronave grudou na minha retaguarda. Eu carregava muitos explosivos, o que dificultava minhas manobras. Tentei várias evasivas para melhor me posicionar, sem sucesso. Quando tudo parecia perdido, avistei na linha do horizonte, mais acima, o estranho objeto veloz. Ele disparou uma espécie de raio que desintegrou o caça alemão. Meus companheiros assistiam a tudo espantados.

Nosso alvo estava bem à frente. Fiz uma primeira investida e atingi um deles. Subi para me reposicionar. Quando efetuava a curva fui atingido. Tentei controlar a aeronave, sem sucesso. Tentei ejetar, o sistema não funcionou. Com muito esforço consegui colocar meu avião na rota do depósito de munição. Nos meus últimos instantes avistei o estranho objeto, os aviões de meus companheiros. Lá embaixo apreciei a paisagem, comparei-a com as lembranças das descrições das cartas de Seu Alberto quando voava em seus balões. Como um pássaro ferido, fiz meu último voo. Lembrei-me do meu filho. Quem sabe ele conseguisse realizar o meu sonho de voar mais alto, até o espaço, sonho que dividi com Santos Dumont e meu pai.

Relatório da Missão: 14/05/1945. Na missão de número 35 os alvos foram atingidos e destruídos. Durante as manobras o caça líder foi atingido por um tiro da Flak. O piloto não ejetou, direcionando-se em direção a um dos alvos, porém antes de chocar-se contra o solo, um intenso clarão tomou conta do local onde ocorreria o impacto e a aeronave e seu piloto não foram mais visualizados. O estranho objeto, avistado no céu, instantes antes, surgiu próximo do local e desapareceu rapidamente com velocidade aparentemente superior a qual se movimentava quando foi inicialmente avistado.

Foram feitos outros dois vôs de reconhecimento, por segurança, antes que o alvo fosse novamente bombardeado.



Texto selecionado no 3.° Desafio Literário da Revista Pacheco
Publicado em antologia digital – out/2014


Adnelson Campos
22/02/2015

 

 

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